sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O que não se sente de apenas um jeito

Feliz era Cecília, que tinha Peri, Loredano e Álvaro. Segundo José de Alencar: "Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava." E aqui se criaram três facetas bem diferentes do que a gente pode tentar chamar de amor, aquele, o eros

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Eu vinha da Central do Brasil, no horário em que os trens pulsavam em plena vida. As pessoas se apinhavam na plataforma a espera de um bloco de metal sobre trilhos. Havia uma vontade desesperada de chegar em casa. O dia na joalheria da zona sul tivera sido fastidioso, mas ao menos a educação dos clientes endinheirados compensavam um pouco. Com a bolsa a tiracolo, decidi que não dormiria na casa de meus pais em Botafogo. Fabrício tinha me ligado e me relatado um mal estar febril, o que me causaram preocupação. Era, portanto, dia de visitar o meu sapo plebeu que vivia escondido nos confins da zona oeste, em Bangu. Ele precisava de um banho frio forçado!

Com esforço e a custa de uma cotovelada na costela, consegui entrar no trem. Sustentava-me com dificuldade naquelas barras de ferro disputadas como provimentos servidos pela ONU para vítimas de alguma catástrofe. Era o caos. Eu amaldiçoava o fato de ter ido trabalhar de rasteirinha naquele dia, porque mesmo na ponta do pé, eu não ganhava altura para ver se uma corrente de ar um pouco mais limpa e fresca passava acima da minha cabeça.

- Você pode me dar licença, queridinha?

- Mas licença não cria espaço, senhora... - respondi ressentida, sem conseguir deslizar nenhum pouco para a esquerda.

Na certa os gestores da Supervia andaram cabulando algumas aulas de física e se meteram a pensar que dois corpos podem, sim, ocupar o mesmo lugar. E a gente paga caro para ser açoitado como gado no pasto. Eu só poderia mesmo amar Fabrício. Nada menor que este sentimento resistiria ao teste de resiliência a que eu era imposta todas as vezes que decidia cruzar a cidade para vê-lo.

No caminho, uma senhora falava alto ao telefone. Eu tentava relevar sua voz para que o meu grau de irritabilidade não fosse tal que eu cogitasse fazê-la engolir aquele aparelho eletrônico, mas eu não podia. Ela tinha tirado um saco de biscoitos de uma sacola plástica e, enquanto esfarelava e esganava miseravelmente aquilo, falava. E comia. E falava. Não havia quem, naquele vagão, não estivesse tomando ciência da sua vida naquele instante. Ela falava com o esposo e planejava um churrasco no fim de semana, com direito a uma festinha depois, em algum 'hotel' com hidromassagem próximo a casa deles. Este fato, que há muitos despertou o riso, me causou asco. E o nível não tardou a descer ainda mais, em que pese algumas descrições e incitações de como seria este encontro dos dois.

Enquanto tentava me convencer que a cada casal compete criar suas próprias regras e que não há ortodoxias nas expressões de amor, pensava de forma resvalada no meu próprio namoro e nas vezes em que Fabrício agia como se simplesmente fosse marionete de sua libido. Eram sempre as noites mais quentes. E, de um observador mais incauto, talvez também pudesse haver registro de repugnância em relação a gente. Mas ele era também amoroso em outros momentos e, não raras vezes, eu me via como uma santa esculpida em alabastro, sendo cultuada por sua dedicação.

Não. Quem quer que realmente queira se jogar de cabeça num relacionamento vai descobrir que a reinvenção é palavra de ordem e que, mostrar-se como somente o apaixonado, é querer pintar de um limitante vermelho uma parede que admite quase todos os espectros de cores. Eu poderia até ser odiada por Fabrício às vezes, o que não raro acontecia quando brigávamos, mas ao menos sabia que eu não era apenas uma coisa pra ele. Eu era um desafio mais complexo e criativo, que poderia entretê-lo por muito tempo, para além de um possível casamento até. Suspirei sonhadora naquele mar barulhento e suado.

Aquela senhora gorda, que não decidia se amava mais aos biscoitos ou o sexo de seu marido, ela devia ser é muito feliz.


por Lígia